O vale-tudo dos planos de saúde
Operadoras querem liberar convênios de menor cobertura (Por Mário Scheffer, Marilena Lazzarini e Ligia Bahia)
As empresas de planos de saúde partiram para o vale-tudo. Em artigo recente publicado nesta Folha, assumiram em público o que, há meses, conduzem nas sombras. Querem derrubar a lei atual para liberar o comércio de planos de menor cobertura. Querem o direito de captar e reter pagamentos de mensalidades, sem a obrigação de resolver os problemas de saúde de seus conveniados.
Prometem salvar a saúde no Brasil com a venda de planos pobres para pobres, produtos enganosos mais baratos que deixarão de fora quase tudo, dos casos de emergência ao diagnóstico e tratamento de cânceres.
Choram a perda de 3 milhões de clientes nos últimos anos, mas escondem o impressionante ganho de receita em plena recessão —de R$ 109 bilhões, em 2013, para R$ 196 bilhões em 2018. Os aumentos implacáveis das mensalidades e a explosão de ações judiciais contra serviços cada vez piores explicam em parte o milagre.
Plano de saúde, como diz o nome, não pode ser um improviso. É um contrato de pré-pagamento que deve conferir aos cidadãos, na hora do adoecimento, duas garantias: onde ir e, ao chegar ao serviço de saúde, ter o atendimento necessário.
Um projeto de lei apócrifo, denunciado pelo colunista Elio Gaspari em 14 de julho, detalha o golpe da desregulamentação. Além da “modulação” de coberturas conforme o bolso do freguês, o texto libera reajustes, acaba com o ressarcimento ao SUS (quando clientes de planos são socorridos na rede pública), carimba fraude em todos os médicos e hospitais, desrespeita a autonomia profissional, julga doentes crônicos e idosos como gastadores a serem eliminados, alivia multas de operadoras reincidentes em abusos e joga uma pá de cal na já desacreditada Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Sem pai nem mãe, o projeto aguarda adoção, foi deixado pelas operadoras na porta da Câmara dos Deputados. Assim, terceirizam o desgaste da lei impopular enquanto posam de reformadores do sistema de saúde.
Vem coisa feia por aí, pois nunca hesitaram em utilizar meios escusos para obter mudanças legais e vantagens fiscais. Grandes empresas do setor são acusadas de corrupção na Lava Jato, seus malfeitos foram revelados por três delatores; compraram profissionais da imprensa e palestras de famosos; financiaram campanhas de políticos e, em troca, emplacaram diretores e presidentes da ANS; foram sócias da máfia do Imposto Sobre Serviços (ISS) em São Paulo.
Assim, situam-se em dois mundos. No das aparências, propagandeiam suas virtudes competitivas contra o SUS. No real, estabelecem alianças políticas e financeiras. Batem no peito em defesa do mercado, mas trocam favores com governos de plantão.
Agora, determinados a aprovar os planos de saúde segmentados, exibem-se como extremistas radicais do liberalismo, alinhamento ideológico que não resiste à depravação política suprapartidária que mais uma vez pretendem patrocinar.
Mário Scheffer
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
Marilena Lazzarini
Presidente do Conselho Diretor do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)
Ligia Bahia
Professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Fonte: Folha.com / CONTEC