Segunda fase da Reforma Trabalhista tramita disfarçada no Congresso
A Medida Provisória da Liberdade Econômica, editada por Jair Bolsonaro em 30 de abril, tornou-se um Cavalo de Tróia para uma segunda fase da Reforma Trabalhista. Inicialmente apresentada como uma proposta para desburocratizar a vida das empresas, a MP 881 foi ampliada com dezenas de propostas que alteram a Consolidação das Leis do Trabalho na comissão especial mista criada para analisá-la. Os 19 artigos iniciais tornaram-se mais de 50 – veja o quadro comparativo.
Coincidentemente, o projeto recebeu a aprovação de deputados e senadores na última quinta (11), exatos dois anos após o Congresso Nacional ter aprovado a Reforma Trabalhista.
Com seu parecer aprovado na comissão, a matéria será analisada pelos plenários da Câmara e do Senado após o recesso parlamentar e deve ser votada nas duas casas até meados de setembro, data em que expira a MP. Tramita agora como o Projeto de Lei de Conversão (PLV) 17/2019. Parlamentares ouvidos pelo blog afirmam que a proposta não foi anabolizada apenas nos gabinetes de deputados federais e senadores da comissão, mas também no Ministério da Economia com o apoio de setores empresariais.
Há propostas que agilizam processos e economizam recursos, como a emissão preferencial de Carteira de Trabalho em formato eletrônico, tendo como número o CPF. Mas há também vários pontos polêmicos sob o ponto de vista dos trabalhadores que demandariam mais debate público.
“A MP 881 fala de modernidade, mas o que ela faz na realidade é tentar arrebentar com o arcabouço de respeito a direitos dos trabalhadores. Você pode constituir um negócio e não ter fiscalização dos órgãos públicos, não seguir o regramento do descanso semanal, não gerar empregos de qualidade “, afirma o sindicalista Vagner Freitas.
Flexibilização da CLT
Uma das propostas prevê que contratos de trabalho acima de 30 salários mínimos mensais serão regidos pelo Direito Civil, ressalvadas as garantias do artigo 7º da Constituição Federal – que inclui direitos como férias e 13o salário, mas exclui muitas das proteções à saúde e segurança previstas na CLT.
Ivandick Rodrigues, professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado trabalhista, avalia a medida como inconstitucional, por discriminar trabalhadores. “Tanto faz o valor de remuneração ou o tipo de trabalho exercido, sendo um trabalhador empregado, com vínculo celetista, ele terá os mesmos direitos que outro trabalhador celetista.”
A mudança tem sido vista como a porta de entrada para a “carteira verde e amarela”, proposta pelo ministro da Economia Paulo Guedes, em que a “negociação” individual estaria acima da CLT. Jovens ingressantes no mercado de trabalho podem ser o próximo alvo para esse tipo de contrato. Vale lembrar as palavras de Jair Bolsonaro, durante sabatina com empresários, em julho do ano passado: “o trabalhador vai ter que decidir se quer menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego”.
Repouso semanal
Outras medidas tratam do repouso semanal remunerado. A Constituição prevê que o descanso pode ser concedido preferencialmente aos domingos e determinadas categorias já contam com regras para o trabalho nesse dia estipuladas em negociações coletivas. O parecer aprovado na comissão autoriza o trabalho aos domingos e feriados, sem permissão prévia.
Noemia Porto, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), alerta que isso pode levar a uma “generalização” do trabalho aos domingos que, hoje, é uma exceção. Ainda mais se o descanso acabar suprimido em nome de remuneração extra. “Todos os dados estatísticos mostram que o excesso de disponibilidade para o trabalho é um risco laboral e está relacionado a doenças ocupacionais e acidentes, dos quais o Brasil é um dos campões mundiais.” Para ela, ao invés de “esgotar a força vital das pessoas”, empresas deveriam contratar mais trabalhadores.
Outra proposta aponta que “havendo necessidade imperiosa nas atividades econômicas do agronegócio”, sujeitas a condições climáticas, o trabalho poderá ser exercido em sábados, domingos e feriados, prevendo remuneração ou compensação. Com isso, o trabalhador pode ficar quase duas semanas sem descanso em uma atividade naturalmente mais penosa.
“A proposta concede autorização ampla e irrestrita tentando eliminar condicionantes para autorizar o trabalho nesses dias. Hoje, é possível que trabalhadores atuem aos domingos, há uma portaria do então Ministério do Trabalho autorizando isso, mas isso está sujeito a um acordo coletivo”, afirma Carlos Eduardo Chaves Silva, assessor jurídico das Federações dos Trabalhadores Assalariados Rurais de Pernambuco e do Rio Grande do Sul. Segundo ele, no Vale do São Francisco, o acordo garantiu que trabalho aos domingos geraria folga durante a semana mais remuneração com 100% de acréscimo. “Não se é contra o trabalho aos domingos, mas isso deve ser feito de forma criteriosa, avaliando o histórico do empregador, elaborando turnos de revezamento para garantir o repouso semanal. É necessário regulação por lei ou acordo para evitar que o empregador decida sozinho.”
Acidentes de trabalho
O projeto mantém a existência de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) facultativa em locais com menos de 20 trabalhadores, mas também exclui as pequenas e microempresas. Vale lembrar que o Brasil é um dos campeões mundiais de acidentes de trabalho. Entre 2012 e 2018, ocorreu um acidente a cada 49 segundos e um morto a cada 3h38, causando também um prejuízo bilionário. Nesse sentido, eliminar a obrigatoriedade da comissão vai na contramão do combate aos impactos sociais e econômicos decorrentes de acidentes. Uma das principais razões para a medida é que os empregados que fazem parte dela têm estabilidade no emprego.
“As piores mudanças dizem respeito à exclusão de obrigatoriedade da Cipa para micro e pequenas empresas e as mudanças na sistemática de fiscalização e processo administrativo dos auditores do trabalho, pois vejo que ambas as hipóteses prejudicarão – ainda mais – a problemática dos acidentes no Brasil”, afirma Ivandick Rodrigues. “Associado com as mudanças que se pleiteam para o sistema de seguridade social, os trabalhadores terão uma cobertura menor sobre o acidente ou doença do trabalho.”
Fiscalização
Helder Santos Amorim, vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), também alerta para o que chama de “afrouxamento da inspeção do trabalho”, o que pode causar um impacto direto sobre a saúde e a segurança dos empregados. Um dos pontos é o que amplia o leque de infrações trabalhistas para os quais a dupla visita é aplicável. Para casos não listados como graves pelo governo, os auditores fiscais devem orientar e não multar a empresa na primeira visita, incluindo alguns casos que envolvem estabelecimentos de grande porte ou que funcionam há muito tempo. A dupla visita pode se transformar na regra e não na exceção, como é hoje, levando parte dos empresários a aguardar a fiscalização para fazer o que já deveriam ter feito.
O projeto também prevê a instalação de um “conselho recursal paritário tripartite” com a presença de trabalhadores, empregadores e auditores fiscais do trabalho para analisar recursos de multas trabalhistas aplicadas em última instância. O governo Michel Temer tentou implementar essa estrutura e sofreu críticas pela possibilidade de empregadores e trabalhadores terem poder de anular autuações. A Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, afirma que a função deve ficar na mão apenas de auditores fiscais concursados, com estabilidade e independência. De acordo com Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), “a medida acabará por politizar debates técnicos, como é o caso dos autos de infração de trabalho análogo ao de escravo”.
Carlos também ressalta que a proposta traz uma matriz de risco, criando uma “amarra” para fiscalizações e sanções para riscos mais leves. Na prática, há situações e atividades que serão fiscalizadas apenas se houver denúncias. “Fiscalizar somente por denúncia, num país onde os sindicatos estão fechando suas portas e os trabalhadores têm medo de perder seus empregos, significará não fiscalizar. Esse processo ataca um vasto e profundo trabalho de inteligência fiscal que já é utilizado para alcançar atividades e setores com problemas crônicos quanto ao cumprimento da legislação trabalhista”, afirma.
Jornada de trabalho
Outro polêmica é a permissão de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho. Com ela, o empregado não bate ponto todos os dias, mas registra apenas as entradas e saídas diferentes do normal. “O projeto prevê que isso pode ser definido por acordo individual por escrito com o trabalhador em empresas com até 20 empregados. Imagine as fraudes, com horas não registradas”, afirma o procurador Helder Santos Amorim.
“O registro do ponto por exceção pode significar o fim do controle da jornada e o esvaziamento da fiscalização desse atributo. O mais grave disso está no ambiente mais favorável à ocorrência de doenças e acidentes do trabalho, além das questões salariais, que terão evidentes problemas em se reconhecer o valor real devido a cada trabalhador por suas jornadas ampliadas de trabalho”, afirma Carlos Silva, do Sinait. Sonegadores e fraudadores podem se beneficiar com isso. Por oposição, como o controle de jornada não é obrigatório, há uma situação de insegurança jurídica e o empregador que faz tudo dentro da lei pode ser vítima de fraude por parte de trabalhadores com más intenções.
Responsabilização empresarial
Há propostas que alteram a responsabilidade do grupo econômico. Com isso, uma empresa do mesmo grupo só poderá ser responsabilizada no caso de um calote juntos aos empregados se houver comprovação de fraude. De acordo com Noemia Porto será mais difícil punir aqueles empregadores e empresas acostumados a deixar um rastro de irregularidades. A presidente da Anamatra avalia que “o projeto como um todo contribui para o processo de desestruturação do mercado de trabalho no Brasil”.
Fonte: UOL – Leonardo Sakamoto / CONTEC