Grávidas e trabalho insalubre: controvérsias seguem com projeto do Senado
Projeto que segue para a Câmara altera artigo da CLT que permite que grávidas trabalhem em locais insalubres
Grávidas e lactantes podem trabalhar em ambientes insalubres? De acordo com a legislação atual, pós-reforma trabalhista, sim. O tema entrou na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 2016, mas já foi alvo de muitas mudanças e discussões. Agora, um projeto de lei do Senado pode trazer mais uma alteração.
Dentre polêmicas e muitas idas e vindas, especialistas apontam que o cerne da questão deve ser a saúde das mães e dos bebês, e que a proposta do Senado, apesar de voltar a proibir atividades insalubres em todos os graus para grávidas, pode trazer poucas mudanças na prática. Isso porque, na visão de pessoas ouvidas pelo JOTA, permanece a possibilidade de gestantes trabalharem em níveis médio e mínimo de insalubridade, neste caso mediante atestado médico. Já para as lactantes, o trabalho continua permitido em todos os graus de insalubridade.
Em ambos os casos, o adicional é mantido se a mulher aceitar permanecer na atividade, o que, para algumas advogadas, pode gerar uma escolha entre ter desvantagens financeiras ou prezar pela saúde. Antes da reforma, grávidas e lactantes não podiam continuar em atividade insalubre sob nenhuma hipótese. A mudança trazida pela reforma trabalhista, aliás, é questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5938.
Antes da reforma, o dispositivo legal era simples: a trabalhadora grávida ou lactante era dispensada de atividades insalubres, devendo ser transferida para uma atividade salubre. “Com a reforma, se pressupõe que ela pode trabalhar em graus médio e mínimo. [Caso contrário] ela tem que provar que não pode”, comenta a advogada Marina Ruzzi, do Braga e Ruzzi Sociedade de Advogadas. A alteração da reforma chegou a não valer por quatro meses, por força de uma Medida Provisória (MP), mas o texto perdeu a validade por não ter sido votado pelo Congresso e o dispositivo trazido pela reforma voltou à vigência.
Vai-vem na CLT
Tudo começou em 2016, quando, após pressão de setores de defesa do trabalhador, foi aprovada a Lei 13.287, que inseriu na CLT o artigo 394-A. O artigo dizia que “a empregada gestante ou lactante será afastada, enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades, operações ou locais insalubres, devendo exercer suas atividades em local salubre”.
A Lei 13.467/2017, que instituiu a reforma trabalhista, porém determinou que o afastamento deve ocorrer apenas em grau máximo de insalubridade. Com a reforma, o artigo 394-A ganhou uma série de incisos, prevendo o afastamento de mulheres grávidas de atividades consideradas insalubres em grau máximo. Em graus médio ou mínimo, a gestante deve apresentar atestado médico recomendando o afastamento. No caso das mulheres que estão amamentando, o afastamento só deverá ser concedido mediante atestado, em qualquer grau de insalubridade.
O artigo também determina que, caso a mulher seja afastada de atividade insalubre de grau máximo, ou de graus médio e mínimo mediante atestado, seu adicional está garantido. Em seu inciso 3, o dispositivo estabelece que, quando não for possível que a trabalhadora grávida ou lactante exerça suas atividades em um local salubre na empresa, “a hipótese será considerada como gravidez de risco e ensejará a percepção de salário-maternidade, nos termos da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, durante todo o período de afastamento”.
Para a advogada Aline Belloti, do LBS Advogados, esse inciso é prejudicial às empregadas mulheres. “Se a empresa não tiver local nenhum salubre, ela vai ser afastada pelo salário-maternidade do INSS. Mas aqui seria o da própria licença-maternidade, que tem duração de quatro meses. Ou seja, ela perderia o seu direito. Uma lei não conversa com a outra”, diz.
As mudanças não pararam por aí: a Medida Provisória (MP) 808 entrou em vigor no mesmo dia da Lei 13.467, em 14 de novembro de 2017, e trouxe novas nuances para o tema. A MP 808 valeu por 180 dias, até que caducou por não ter sido votada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
A medida determinava que as grávidas seriam afastadas de “quaisquer atividades, operações ou locais insalubres” e que exerceriam “suas atividades em local salubre, excluído, nesse caso, o pagamento de adicional de insalubridade”, além de inverter a comprovação: a gestante só poderia exercer atividades insalubres em grau médio ou mínimo sob apresentação de atestado de saúde autorizando a sua permanência. No caso das lactantes, o enunciado continuava o mesmo.
A medida não foi votada pelo Congresso, portanto perdeu sua validade no dia 23 de abril, e o artigo 394-A voltou ao que era de acordo com a reforma trabalhista.
O conceito de trabalho considerado insalubre consta nos artigos 189 a 194 da CLT, todos incluídos em 1977. Os dispositivos estabelecem que são atividades insalubres aquelas que exponham os empregados a agentes nocivos à saúde “acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”. De acordo com os artigos, os tipos e níveis de insalubridade devem ser regulamentados pelo Ministério do Trabalho.
O Ministério do Trabalho, extinto pelo presidente Jair Bolsonaro no início do mês, detalhou quais atividades e locais podem ser considerados insalubres, regras para atuação nessas atividades e níveis de insalubridade por meio da Norma Regulamentadora nº 15, criada em 1978. O documento estabelece a tolerância a ruídos, a agentes químicos e radioativos, exposição ao calor, ao frio e à umidade, a agentes biológicos, entre outros. Profissionais da área da saúde, da indústria química, da mineração, radiologistas e soldadores são alguns exemplos de trabalhadores que exercem atividades insalubres e devem receber adicional.
Senado retoma MP que caducou
Em maio de 2018, após a MP caducar, o tema ganhou mais um capítulo, dessa vez no Senado Federal. O senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO) criou o Projeto de Lei 230, que foi aprovado em dezembro do ano passado e agora foi encaminhado à Câmara dos Deputados.
Em sua justificativa, o senador Ataídes Oliveira diz que o projeto de lei quer preencher a lacuna deixada pela MP 808, com texto idêntico ao da medida. Na proposta, o artigo 394-A estabelece que a empregada gestante será afastada, durante toda a gestação, de “quaisquer atividades, operações ou locais insalubres e exercerá suas atividades em local salubre, excluído, nesse caso, o pagamento de adicional de insalubridade”.
O PLS 230 ainda estabelece, no inciso 2º do dispositivo, que o exercício de atividades e operações insalubres em grau médio ou mínimo por grávidas “somente será permitido quando ela, voluntariamente, apresentar atestado de saúde, emitido por médico de sua confiança, do sistema privado ou público de saúde, que autorize a sua permanência no exercício de suas atividades.
O senador autor da proposta justifica que o dispositivo “tem o cuidado de não promover situações de discriminação da mulher em locais com atividades insalubres, o que pode afetar a sua empregabilidade, principalmente quando se tratar de mulher em idade reprodutiva”. Ele ainda diz que “é de grande importância atingir ambos objetivos, quais sejam a garantia da saúde da mulher e a sua empregabilidade, notadamente em atividades ligadas à área de saúde”.
Na visão do ginecologista e obstetra Sérgio Makabe, membro da Comissão de Aleitamento Materno da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, o médico deve avaliar caso a caso, e ouvir a paciente para entender se o ambiente coloca em risco a saúde dela ou do bebê.
“Óbvio que não cabe a nós, médicos, fazer essa divisão do nível de insalubridade. Se afeta diretamente a saúde da mãe e do filho, isso tem que ser levado em consideração”, diz Makabe. Ele destaca, porém, que é uma decisão da gestante. “Se ela não vê nenhum problema em um ambiente de insalubridade mínima, eu não vejo razão para afastá-la, até porque gravidez não é doença, e se ela puder continuar trabalhando é até melhor”, comenta.
Para a advogada Marina Ruzzi, o problema do PLS 230 é que ele pode abrir brechas para as mulheres escolherem trabalhar em ambientes insalubres para não perder o adicional de insalubridade. “Esse projeto de lei prevê que, se ela for afastada da atividade insalubre, vai perder seu adicional. Então em nome da saúde ela abre mão da verba salarial, é complicado”, comenta.
Antes da reforma trabalhista, o adicional não era mantido durante o afastamento, mas não havia a possibilidade de escolha da gestante ou da lactante em continuar trabalhando para manter a verba salarial. Com a reforma, a grávida deve continuar trabalhando em graus mínimo e médio de insalubridade, somente podendo ser afastada mediante recomendação médica – o adicional, nestes casos, é mantido.
Constitucional?
A constitucionalidade do dispositivo trazido pela reforma trabalhista é questionado no STF por meio da ADI 5938, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM) no ano passado. A ação está sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes e ainda não entrou em pauta.
“O trabalho da mulher gestante e lactante em ambientes insalubres não prejudica só a mulher, mas o bebê. Consideramos como um crime contra a humanidade”, justifica Miguel Torres, presidente da CNTM, sobre a ADI.
Sobre o projeto do Senado, Torres diz que o texto é “perigoso”: “A cláusula que permite o trabalho, desde que o médico de confiança ateste que o trabalho é insalubre, é perigosa. Nós sabemos que a maioria dos trabalhadores não tem médico de confiança”.
Para a advogada Aline Belloti, há embasamento para questionamento tanto do atual artigo 394-A, trazido pela reforma, quanto para o texto do PLS, caso seja aprovado. “Daria para considerar ofensa ao artigo 6º da Constituição Federal, que fala da proteção à maternidade e à infância, ou o artigo 7º, que trata sobre a proteção do mercado de trabalho da mulher”, diz.
Fonte: Jota.Info / CONTEC